segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Não és o único, Relvas. Mas não penses que isso te safa.

«Escrevemos livros porque os nossos filhos se desinteressam de nós. Dirigimo-nos ao mundo anónimo porque a nossa mulher tapa os ouvidos quando lhe falamos. (...) Uma mulher que escreve quatro cartas por dia ao amante não é uma grafómana. É uma apaixonada. Mas o meu amigo que tira fotocópias da sua correspondência amorosa para a poder publicar um dia é um grafómano. A grafomania não é o desejo de escrever cartas, diários, crónicas familiares (ou seja, escrever para si ou para os que estão próximos) é o desejo de escrever livros (portanto, de ter um público de leitores desconhecidos).
(...)
A irresistível proliferação da grafomania entre os homens políticos, os motoristas de táxi, as parturientes, os amantes, os assassinos, os ladrões, as prostitutas, os prefeitos, os médicos e os doentes demonstra-me que qualquer homem, sem excepção, traz em si um escritor virtual, de modo que toda a espécie humana poderia, com razão, descer à rua e gritar: somos todos escritores! Porque cada um sofre com a ideia de desaparecer num universo indiferente, sem ser ouvido nem visto, e por essa razão quer, enquanto pode, transformar-se no seu próprio universo de palavras.»

Milan Kundera em O Livro do riso e do esquecimento.

Jessica Stam
Gostava de saber o que pensará hoje, com 83 anos, acerca da blogosfera, este espaço livre e ilimitado em que todos são autores, grafómanos lidos como escritores.

Podia ficar-me pela análise da necessidade sentida por cada um de nós, detentor de um grão de areia virtual, de encher de caracteres um diário informático aberto a quem o queira ler. Poderia fazê-lo, mas não me apetece. Acho que este excerto de Kundera é um bom mote para deixar aqui registada mais uma vez a minha aversão à ignorante arrogância de quem escreve sem poder fazê-lo. Ou melhor, de quem se assume como algo que não é.
Passo a explicar: acho inconcebível que se escreva para um público alargado ou para meia dúzia de conhecidos com uma ortografia manchada por erros primários. Acho vergonhosa a apresentação de textos em que a sintaxe é para quem os escreve apenas uma palavra de significado desconhecido. A democratização da escrita inerente à blogosfera, ou seja, a possibilidade de qualquer grunho criar um blog, provoca-me náuseas. Acredito que Camões choraria lágrimas de sangue se voltasse à Terra e visse o que foi feito da sua Língua Portuguesa.
Não sei se também notam a leviandade com que se usa o nosso Português, se também se irritam com isso e se perante os vossos olhos, o criador de tão pobres junções de vocábulos também perde credibilidade, mas cada vez me noto menos paciente com este fenómeno - nos blogs como nas redes sociais.

A par desta proliferação de pseudo-escritores, também outras áreas sofrem com o pretensiosismo de leigos: os Relações Públicas viram-se misturados com os RP's das discotecas mais badaladas; os Jornalistas não precisam de formação nenhuma para o ser - qualquer badameco cusco e com lata, ardina ou cronista se diz Jornalista; os Marketeers são abafados por todos aqueles que se consideram tão criativos e cheios de savoir faire que não precisaram de estudar Marketing; os Consultores de Imagem vêem-se confrontados com pessoas que confundem o seu bom gosto e senso comum com o saber sistematizado e apreendido depois do investimento numa especialização... bom, resumindo: vivemos num país que aponta o dedo ao Relvas mas está cheio de gente a fazer o mesmo que o tal ministro. Uma vergonha, senhores. E com esta me vou.

1 comentário:

Imperatriz Sissi disse...

Aplauso! Aplauso! Minha pobre língua, que tão maltratada é...e multas para isso, a encher os cofres do Estado num ápice, não era lindo?